segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A capoeira e a Globalização




É preciso entender que o reconhecimento da capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil não significa seu tombamento, que é uma política de preservação do Iphan destinada a bens materiais como museus, igrejas, casarões antigos, etc. A capoeira, como cultura, é um bem imaterial que, ao ser reconhecido como patrimônio nacional, será contemplado com um plano de salvaguarda que aponta para políticas públicas necessárias para manutenção da arte. Como sabemos, a capoeira está no mundo e não corre riscos de extinção, mas muitos mestres, principalmente os mais antigos, têm dificuldades de ensinar e transmitir seu saber. Por isso duas das principais recomendações de salvaguarda que propusemos foram o pedido de aposentadoria especial para o mestre de capoeira e o reconhecimento do seu notório saber, para que possa ensinar em escolas, academias e universidades sem precisar de diploma de educação física.
Maurício Barros de Castro
Assistente de Coordenação do Inventário para Registro e Salvaguarda
 da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil.
Em julho de 2008 a capoeira será reconhecida como “patrimônia” cultural imaterial do Brasil. Mas até chegar aqui, ela e os capoeiristas que são e foram seus vetores de carne, sangue, jogo e sonhos tiveram um longo caminho a percorrer.
Eis um breve panorama da história deste jogo-dança-luta, com sua malícia - sua ética alternativa à hegemônica, com raízes na africanidade e na  malandragem. Eis o surprendente "jogo" brasileiro que conquistou as metrópoles dos chamados Países Centrais através do trabalho e da iniciativa particular de jovens mestres aventureiros, sem o apoio financeiro ou estratégico de órgãos governamentais, entidades privadas, a mídia ou o capital estrangeiro e/ou nacional.
A capoeira carioca dos 1800s
No Rio de Janeiro, durante todo o século XIX, os arrogantes e violentos capoeiras, inicialmente escravos africanos ladinos (já adaptados ao Brasil) e, mais tarde também os crioulos (nascidos do Brasil), reuniam-se em maltas que eram o terror das "pessoas de bem" e o flagelo das autoridades policiais.
Ao contrário de algumas teses "puristas e heróicas", a capoeiragem carioca dos 1800s não era uma "luta de libertação" no sentido mais simplista; a capoeira e as fugas para os quilombos eram práticas paralelas, mas geralmente dissociadas. A capoeira era algo que estabelecia uma hierarquia entre a massa escrava e delimitava determinados territórios urbanos. Ficar na cidade como escravo, mas pertencendo a uma malta, era uma opção política e de poder que os escravos capoeiras escolhiam voluntariamente.
A partir aproximadamente de 1850, as maltas começaram a absorver pardos e mestiços; imigrantes portugueses pobres como o engajado (que pagava a passagem transatlântica com cinco anos de trabalho em condições quase semelhantes às dos escravos) e o fadista (o "malandro" da Mouraria lisboeta com sua temível navalha-de-ponta, o "Santo Cristo"); brancos brasileiros pobres; militares e policiais; jovens estroínas, ricos e violentos, da jeunesse dorée carioca - os elegantes cordões; e seus equivalentes portugueses - os marialvas; marinheiros brasileiros e de muitas outras nacionalidades, muitos deles, desertores; estrangeiros das mais diversas nacionalidades - os estrangeiros eram 22% em 1885; em 1891, p.ex., Moyses Corull,  um negro norte-americano residente à rua da Saúde, foi preso por estar em "exercícios de capoeiragem"  (SOARES, 1994, p.134).
Isso sem falar nos temidos capoeiras que "não recebiam influências da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua conta e risco", como o temível Manduca da Praia, que "respondeu a 27 processos por ferimentos leves e graves, saindo absolvido em todos eles pela sua influência pessoal e de seus amigos".
Soares recorta um artigo de 9/1/1891 em Novidades:
Quase todos os verdadeiros capoeiras foram do serviço de altos personagens políticos, e tudo o que fizeram foi contando com a proteção dessses personagens, ou por mando deles.  Serviram em todas as situações e a todos os governos da Monarquia. (SOARES, 1994, p.263)
No Rio, a capoeira - uma capoeira violenta sem berimbau - foi miscigenada quase que nos seus primórdios.  Capoeirista "foi desde a nobreza, com o Barão do Rio Branco, dentre outros, até o negro escravo" (REGO, 1968, pp. 260-261).

Curiosamente, esta prática perseguida pela polícia acabou defendendo a honra e o pavilhão nacional. Em 1865, o Brasil, a Argentina e o Uruguai entraram em guerra com o Paraguai. O exército brasileiro formou batalhões de capoeiras; muitos foram agarrados à força nas ruas.
Na própria marinha, o ramo mais aristocrático das Forças Armadas, destacou-se a presença dos capoeiristas.  Não entre a elite do oficialato, mas entre a "ralé" da marujada (que cinquenta anos depois iria se rebelar na Revolta da Chibata).
Marcílio Dias (o herói da Batalha do Riachuelo, embarcado no Parnahyba) era rio-grandense e foi recrutado quando capoeirava à frente de uma banda de música. Sua mãe, uma velhinha alquebrada, rogou que não levassem seu filho; foi embalde, Marcílio partiu para a guerra e morreu legando um exemplo e seu nome. (Correio Paulistano, 17/6/1890)
Os capoeiras do Batalhão de Zuavos, especialistas em tomar as trincheiras inimigas na base da arma branca, fizeram misérias na Guerra do Paraguai.
Manuel Querino descreve-nos "o brilhante feito d'armas" levado a efeito pelas companhias de "Zuavos Baianos" no assalto ao forte Curuzu, quando os paraguaios foram debandados.
Destacam-se dois capoeiras nos combates corpo-a-corpo: o alferes Cezario Alves da Costa - posteriormente condecorado com o hábito da Ordem do Cruzeiro pelo marechal Conde d'Eu, e o alferes Antonio Francisco de Melo, também tripulante da já citada corveta Parnahyba que, entretanto, teve sua promoção retardada devido ao seu comportamento, observado pelo comandante de corpos:  "O cadete Melo usava calça fofa, boné ou chapéu à banda pimpão e não dispensava o jeito arrevesado dos entendidos em mandinga" [p.79]. (REIS, L.V.S., 1997, p.55)
Mais tarde, já no final dos 1800s, as maltas cariocas tornam-se fenômeno de mídia, com tanto espaço nos jornais quanto as contemporâneas gangues do narcotráfico. Estas maltas dividiam-se em dois grandes grupos, os Nagoas e os Guaimus .  Esta capoeira carioca, dos 1800s, foi dizimada com a Proclamação da República e a subsequente perseguição policial, na década de 1890.
Mas estas maltas cariocas, dos 1800s, deixaram um herdeiro: o malandro.  Nas décadas seguintes, a capoeiragem das maltas vai enxamear o imaginário carioca e especificamente o do samba, desembocando na figura cantada, encantada e decantada do valente/malandro, nas décadas de 1920 e 1930.
A capoeira baiana dos 1900s
... as formas "clássicas" praticadas nas áreas portuárias da Baía de Todos os Santos, emergiram numa data posterior, ao final do século XVIII. (ASSUNÇÃO, 2005, p.7)
A capoeira é normalmente associada à Bahia, mas a capoeira baiana, com a roda e o berimbau, e com os elementos rituais e lúdicos (que é a capoeira praticada no mundo inteiro em nossos dias), só se torna "historicamente visível" (e logo a seguir, hegemônica) a partir aproximadamente de 1900, com o temido Besouro Cordão-de-Ouro e os "bambas da era de 1922", descritos por mestre Noronha:
Em 1917 famos convidado para uma roda de capoeira na curva grande... roda de capoeira que so tinha gente bamba todos elles estava combinado para nos escurasar junto com a propria policia... corgiu (surgiu) uma forte discucão o sargento saqou uma arma de fogo que foi tomado da mão do sargento pello capoeirita que ten o apelidio Julio cabeica de leitoia um grande dizodeiro...  foi um caceite disdobrado...
Estou relebrando os tempo passado na curva grane (grande) defrante au bale (baile) da bisça - Mestre Noronha. (NORONHA , 1993, p.30)
Na década de 1930, Getúlio Vargas tomou o poder e, procurando um apoio popular para a sua "retórica do corpo" (TAVARES, 1984), permitiu a prática (vigiada) da capoeira: somente em recintos fechados e com alvará da polícia.
Mestre Bimba (1900-1974) aproveitou a brecha e abriu a primeira "academia" de capoeira baiana, dando início a um novo período - o das "academias" - após o período de "escravidão" e de "marginalidade".
Não é difícil detectar nesta movimentação a mesma estratégia que levava os negros dos grandes terreiros de candomblé de Salvador ou os músicos negros do Rio de Janeiro a se aproximarem de figuras representativas da sociedade global.  Tratava-se realmente de uma estratégia de aproximação interétnica, em busca de uma certa proteção legal, eclesiástica e patriarcal, característica do transculturalismo brasileiro que, do lado das classes dirigentes, ensejava, por meio de uma síntese entre povo e nação, a formação de uma cultura nacional-popular. (SODRÉ, 2002. pp.64-65)
“Os capoeiristas, bambas e valentões, vão sendo substituídos em importância, na cena principal da capoeira, por mestres (como Bimba e Pastinha, e também outros das gerações mais novas como Waldemar da Liberdade, Canjiquinha, Caiçaras etc.) que com zelo vão exercer uma nova ação civilizadora dentro da capoeira”, comenta lucidamente Fred Abreu (IN NORONHA, 1993, p.120)
O dr. Angelo Decânio Filho - Mestre Decânio (1925) - sintetiza, com maestria, a determinante contribuição dos mestres Bimba e Pastinha (1889-1981) na feitura da capoeira contemporânea:
“(...) em todo o jogo existe a semente da maldade e em toda luta encontramos movimentos portadores do germe lúdico, dentro do conjunto do aperfeiçoamento do Ser.
De modo similar, enquanto Mestre Pastinha enfatizou os aspectos metafísicos, éticos e até religiosos da capoeira, preocupando-se com a perpetuação da sua obra; Mestre Bimba dedicou-se sobretudo aos componentes pragmáticos, legalização da sua prática, o aperfeiçoamento de sua técnica e a sua aplicação à defesa pessoal.” (DECANIO, 1996, pp. 33-34)

Mestre Acordeon, outra lenda viva, ex-discípulo de Bimba, atualmente ensinando na Califórnia, analisa de modo semelhante a complementaridade dos papéis dos criadores dos estilos "angola" e "regional", ao enfocar as definições: "capoeira é mardade" (Bimba); "capoeira é tudo que a boca come" (Pastinha).
Apesar da aparente incongruência destas definições de capoeira, elas não são conflitantes.  Para Pastinha, o sábio mestre amado por tantos devido á sua personalidade afável, capoeira é tudo que a boca come - todas as coisas que vêm com a vida.  Para Mestre Bimba, o gigante de personalidade forte, ex-carpinteiro, ex-estivador, ex-carroceiro, criador da capoeira regional, e mestre extremamente respeitado em sua arte, capoeira é falsidade, a maneira de lidar com os perigos da vida.
Estas respostas complementam-se e resumem as filosofias de dois dos maiores nomes da história da capoeiragem. (ALMEIDA, Mestre Acordeon, 1986, pp.1-2)
Da Bahia para o Rio, São Paulo, Brasil e mundo
A partir aproximadamente de 1950, e mais fortemente 1960, capoeiras baianos emigraram para o Rio e São Paulo e, em breve, em 1970, fortalecidos por jovens e talentosos jogadores das duas grandes metrópoles, as duas cidades começaram a dividir a hegemonia da capoeiragem com a Bahia.
A capoeira também começou a se tornar popular em outras capitais brasileiras e as academias começaram a se multiplicar em progressão geométrica. E logo depois, em 1971, a capoeira é ensinada na Europa (Nestor Capoeira no "London School of Contemporary Dance"); e, em 1975, nos Estados Unidos (Jelon Vieira e Loremil, em Nova Iorque). Hoje em dia, estimamos uns 1.000 professores de capoeira na Europa; outros 1.000 nos Estados Unidos e Canadá; uns 500 espalhados por todos os outros continentes; e uns 25.000 professores de capoeira no Brasil.
O mais espantoso é que toda esta dinâmica foi vetorizada pela iniciativa particular de jovens capoeiristas, sem o apoio financeiro ou estratégico de órgãos governamentais ou entidades privadas. A capoeira, em sua história, ou no que conhecemos dela a partir de 1800, sempre caminhou com suas próprias pernas; melhor dizendo, com as pernas dos próprios capoeiristas.
A partir de 1985, aumentou o interesse de estudiosos da área acadêmica; apareceram artigos, alguns livros e, no mínimo, uns 50 trabalhos (mestrado e doutorado) no Brasil e exterior em oposição às décadas anteriores onde quase nada foi feito.
Hoje, século XXI, a capoeira vive a sua "época de ouro": patrimônio imaterial brasileiro e sucesso de "crítica e público" no estrangeiro.
Nestor Capoeira (Nestor S. dos Passos Neto), iniciado por mestre Leopoldina (1933-2007), recebeu a "corda-vermelha" (graduação máxima) do Grupo Senzala em 1969. Tem quatro livros enfocando a capoeira publicados no Brasil (Ed. Record) e também na Alemanha, França, Estados Unidos, Holanda, Dinamarca, Finlândia e Polônia. Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ, 1995 e 2001, orient. prof.dr. Muniz Sodré).

0 comentários:

Postar um comentário

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More

 
Powered by Blogger